Em 31 de janeiro de 2025, o Tribunal de Justiça do Paraná, por meio da 14ª Câmara Cível, na Apelação Cível n° 0003149-64.2022.8.16.0049, decidiu extinguir, sem resolução de mérito, uma ação de superendividamento movida por uma consumidora que buscava a renegociação de suas dívidas.
O fundamento adotado foi o de que todas as dívidas envolvidas eram de empréstimos consignados, modalidade que, segundo o Decreto nº 11.150/2022, estaria excluída do procedimento previsto na Lei nº 14.181/2021.
A decisão aplicou, sem qualquer questionamento, um decreto manifestamente inconstitucional e ilegal, negando à consumidora o direito à repactuação de suas dívidas e esvaziando o propósito da lei.
Esse caso demonstra um grave equívoco jurídico e social e reforça a necessidade urgente de capacitação da magistratura sobre os princípios do superendividamento e sua correta aplicação. O erro do Tribunal não se limitou à aplicação de um decreto ilegal. Houve também uma má interpretação da própria norma.
O Decreto nº 11.150/2022, embora tenha excluído o crédito consignado da análise do mínimo existencial, não o retirou do alcance da Lei do Superendividamento. Ou seja, o consignado continua sujeito à repactuação das dívidas. O decreto, ainda que ilegal, não determinou sua exclusão do procedimento de renegociação.
Consumidores superendividados prejudicados
Ao interpretar erroneamente o decreto, o Tribunal criou uma limitação que sequer existia no próprio texto normativo, ampliando indevidamente os seus efeitos e prejudicando consumidores superendividados.
A inconstitucionalidade do Decreto nº 11.150/2022 é evidente. Ele viola o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição, ao fixar um mínimo existencial insuficiente para garantir a sobrevivência digna do consumidor.
Além disso, o decreto é ilegal, pois extrapola sua função regulamentar e interfere no conteúdo da lei, algo que apenas o Poder Legislativo tem competência para fazer. A Lei nº 14.181/2021 estabeleceu algumas exceções ao procedimento de superendividamento, como dívidas de natureza tributária, alimentícia, fiscais e para aquisição de bens de luxo, mas jamais excluiu os empréstimos consignados.
Ao tentar restringir a inclusão do consignado por meio da exclusão desse tipo de crédito da análise do mínimo existencial, o Poder Executivo inovou no ordenamento jurídico, criando barreiras que o Legislativo deliberadamente não estabeleceu.
Ao aplicar essa regra sem qualquer reflexão crítica, o Judiciário incorreu em um erro grave, transformando uma ilegalidade administrativa em um obstáculo concreto ao direito do consumidor superendividado.
Combate ao superendividamento fica comprometido
Esse tipo de decisão precariza direitos, inviabiliza o propósito da lei e compromete a efetividade da política pública de combate ao superendividamento. O Tribunal também ignorou um princípio fundamental da Lei do Superendividamento: a obrigatoriedade da repactuação das dívidas.
Os artigos 104-A a 104-C do Código de Defesa do Consumidor (CDC) garantem ao consumidor superendividado o direito à renegociação por meio de um processo de conciliação conduzido pelo Judiciário ou por órgãos administrativos.
O superendividamento não pode ser tratado como um simples inadimplemento contratual. Trata-se de uma situação de vulnerabilidade extrema que exige um tratamento jurídico diferenciado.
Renegociação de dívidas
A renegociação das dívidas não é uma mera faculdade dos credores, mas sim um dever imposto pela legislação. A Lei do Superendividamento se fundamenta na função social do contrato e na boa-fé objetiva, exigindo equilíbrio e cooperação entre as partes.
Ignorar esse princípio não apenas desrespeita a letra da lei, mas também agrava a crise do superendividamento, empurrando consumidores para a inadimplência total.
Muitos credores comparecem às audiências de conciliação apenas formalmente, sem qualquer intenção de renegociar as dívidas. Essa postura desvirtua completamente o propósito da lei, que busca garantir ao consumidor uma segunda chance de reorganizar suas finanças sem ser submetido a condições abusivas.
Impacto coletivo
O superendividamento não é um problema individual, mas um fenômeno de impacto coletivo. A impossibilidade de pagar dívidas não atinge apenas o consumidor diretamente envolvido, mas também sua família e seu entorno, gerando instabilidade econômica e social.

A exclusão financeira causada pelo superendividamento intensifica desigualdades sociais e aprofunda o ciclo de pobreza, pois impede que o consumidor tenha acesso a bens e serviços essenciais. O desemprego, a precarização do trabalho e as dificuldades econômicas frequentemente agravam essa situação, tornando impossível a retomada da vida financeira sem a intervenção do Estado.
Quando o Judiciário aplica um decreto ilegal que restringe o alcance da Lei do Superendividamento, ele não está apenas negando um direito individual. Ele contribui ativamente para a perpetuação da exclusão social, impedindo que milhões de brasileiros recuperem sua dignidade e sua autonomia financeira.
O mínimo existencial não pode ser reduzido a um cálculo arbitrário. Ele deve refletir a realidade social e econômica do país, garantindo que o consumidor possa viver de forma digna e sustentável.
Mentalidade ultrapassada
O julgamento ocorrido em 31 de janeiro de 2025 não foi um simples erro técnico. Ele reflete uma mentalidade judicial ultrapassada, que ainda resiste em enxergar o superendividamento como um problema social e estrutural. Enquanto decisões como essa prevalecerem, a Lei do Superendividamento será esvaziada de seu propósito, e milhões de brasileiros continuarão sem acesso a um sistema de renegociação justa e eficaz.
O Judiciário tem um papel essencial na concretização dessa lei e precisa assumir essa responsabilidade. Os Tribunais de Justiça devem promover a capacitação de seus magistrados e assessores, garantindo que as decisões sejam baseadas nos princípios corretos e nos reais objetivos da legislação.
Não se trata de um favor ao consumidor. Trata-se da aplicação correta da lei e da proteção de direitos fundamentais. O Judiciário não pode permitir que um decreto ilegal e inconstitucional esvazie uma legislação que tem como principal objetivo devolver dignidade àqueles que, por razões alheias à sua vontade, caíram na armadilha do superendividamento.