Nos últimos anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem adotado diretrizes para incorporar uma perspectiva de gênero e raça nos julgamentos judiciais, como forma de enfrentar as desigualdades estruturais presentes no sistema de justiça brasileiro. As críticas de Lenio Streck a essas iniciativas, especialmente em suas colunas “As armadilhas dos julgamentos sob ‘perspectiva’ propostas pelo CNJ” e “Garantismo, IA e protocolos do CNJ: os algoritmos brigarão entre si?“, merecem uma análise mais aprofundada à luz da teoria dos direitos humanos e do papel do Judiciário na promoção da igualdade substancial.

Lenio argumenta que os protocolos introduzem riscos de subjetivismo judicial, podendo comprometer a imparcialidade e a segurança jurídica ao estabelecer critérios interpretativos que não estariam previstos no texto constitucional (“Os protocolos representam, indubitavelmente, a tentativa de estabelecer uma inovação na filosofia da linguagem. E na hermenêutica. Na própria filosofia”).
Ele alerta ainda para o que considera uma possível incompatibilidade entre garantismo e julgamentos sob perspectiva, sugerindo que os protocolos poderiam privilegiar a palavra das vítimas em detrimento do contraditório e da ampla defesa:
“Vingando o julgamento sob perspectiva, devemos observar que, como consequência, teremos que o réu responderá pelo-fato-a-partir-de-um-olhar-específico. Não parece problemático? Fala-se muito — em especial, os garantistas, que insistimos nesse ponto — na necessidade de um juízo de garantias, que respeite o devido processo e que não esteja ‘cognitivamente contaminado’ pelas diligências da instrução probatória. Isto foi muito debatido durante o julgamento do juiz das garantias. (2024)”
Essa posição, embora coerente com a crítica que Streck faz há anos ao realismo jurídico e ao ativismo judicial, desconsidera o contexto social e jurídico em que essas diretrizes foram desenvolvidas.
O protocolo de perspectiva de gênero não cria novos direitos, mas orienta magistrados e magistradas na aplicação de princípios constitucionais já previstos, como o direito à igualdade e à não discriminação. O CNJ não busca modificar o texto constitucional, mas oferecer diretrizes interpretativas que auxiliem na identificação de preconceitos inconscientes e estruturais, que frequentemente influenciam práticas e decisões judiciais.
A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos já destacou em diversas decisões a importância de adotar medidas específicas para garantir o acesso à justiça de vítimas de violência de gênero.
No caso V.R.P. e V.P.C. vs. Nicarágua, por exemplo, a corte reconheceu que o devido processo legal deve ser interpretado de forma a assegurar proteção efetiva às vítimas, especialmente em contextos de violência estrutural. A corte afirmou “que as garantias devidas do artigo 8.1 da CADH amparam o direito a um devido processo do acusado e, em casos como o presente, também protegem os direitos de acesso à justiça da vítima de um delito ou de seus familiares e a conhecer a verdade dos familiares.
Streck posiciona o garantismo jurídico como um contraponto aos protocolos, sugerindo que estes introduzem um “viés” perigoso no ato de julgar. No entanto, a própria teoria garantista, em sua essência, busca a proteção dos direitos fundamentais, tanto do réu quanto da vítima. Afinal, proteção do mais débil ocorre de formas distintas. Neste sentido, Julio B. J. Maier leciona que a vítima é “un protagonista principal del conflicto social, junto al autor, y el conflicto nunca podrá pretender haber hallado solución integral, si su interés no es atendido” (2003, 611).
Enriquecendo o garantismo
A crítica de Streck ao risco de subjetivismo é legítima, mas ela não pode servir como argumento para rejeitar por completo instrumentos que têm como objetivo justamente corrigir a parcialidade sistêmica. Ele considera difícil acreditar que a simples existência de um protocolo seja capaz de alterar a postura de um juiz com preconceitos racistas ou machistas, especialmente se esses preconceitos não foram desconstruídos durante sua formação; i.e., para ele, essa mudança depende de uma formação jurídica voltada para práticas antirracistas e antimachistas.
Os protocolos de julgamento sob perspectiva de gênero e raça não ameaçam o garantismo, mas o enriquecem, oferecendo uma visão mais ampla e inclusiva do que significa garantir direitos fundamentais.
Ignorar o impacto do racismo e do sexismo na prática judicial não fortalece a imparcialidade, mas perpetua o privilégio e a desigualdade.
Como demonstram as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a teoria do direito internacional dos direitos humanos, a busca por uma justiça mais justa e equitativa não é uma ameaça ao Estado de Direito, mas uma reafirmação de seus valores mais essenciais.