A discussão acerca da recuperação judicial de produtores rurais surgiu nos debates doutrinários e jurisprudenciais há alguns anos e, como é natural de qualquer tema jurídico controverso, vem amadurecendo com o tempo à medida em que o instituto evolui.
Assim como em qualquer tema jurídico, o que se busca é conferir segurança jurídica aos stakeholders envolvidos nesses processos, tanto por meio da criação de parâmetros claros pelo legislador, quanto pela aplicação da norma ao caso concreto pelo Judiciário.
Nesse sentido, muito embora tenha sido positivada a possibilidade de o produtor rural pedir recuperação judicial, um dos principais desafios atuais é conciliar uma lei originalmente projetada para uma atividade empresária formal, contábil e gerencialmente estruturada, com uma atividade muitas vezes informal, familiar e sem ferramentas gerenciais e contábeis.
É exatamente por isso que, na alteração legislativa de 2020 que positivou tal possibilidade, garantiu-se ao verdadeiro produtor rural o acesso à recuperação judicial, desde que preenchidos os requisitos lá estabelecidos, dentre os quais aqueles do artigo 48 da Lei nº 11.101/05.
Sobre esse ponto, o legislador criou especificamente para esse setor a exigência de comprovar o exercício da atividade rural “com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial”.
Ainda, exigiu-se que as informações contábeis e fiscais estejam “organizadas de acordo com a legislação e com o padrão contábil da legislação correlata vigente”.
Supostos produtores rurais
Como se vê, o legislador exige uma análise criteriosa dos documentos apresentados por um produtor rural que ingressa com pedido de recuperação judicial antes de se determinar seu processamento.
Inclusive porque, nos termos do artigo 49, §6º, da Lei nº 11.101/05, somente se sujeitam aos efeitos da recuperação os créditos que decorram exclusivamente da atividade rural.
E tal rigor se justifica, pois, assim como já ocorre em todos os outros setores econômicos, a recuperação judicial deve ser obrigatoriamente reservada ao empresário e à sociedade empresária que de fato exercem atividade, ou seja, àqueles que se constituem efetivamente como fonte produtora de riqueza e geradora de empregos e tributos.
Contudo, o que tem se visto na prática é muito, mas muito além daquilo que o legislador previu.
É cada vez maior o número de supostos “produtores rurais” – entre muitas aspas – que ingressam com pedidos de recuperação judicial munidos de uma documentação superficialmente suficiente, mas sem qualquer conteúdo de fato.
Um arremedo de livro caixa sem nenhum rigor formal, declarações de Imposto de Renda que só indicam dívidas oriundas de avais em operações de agro e proventos de suas empresas como receitas – às vezes nem isso –, e pronto, está criado um novo produtor rural apto a requerer recuperação judicial.
Mas aí se pergunta: um produtor rural não deveria comprovar que efetivamente cultiva a terra e exerce por si uma atividade rural; que tem empregados que trabalham as suas terras; que compra insumos para plantar; que tem notas fiscais dos produtos por ele comercializados e aufere receitas da venda de tais produtos? Em resumo, que é por si só – ainda que dentro de um grupo econômico –, uma fonte produtora de riqueza e geradora de empregos e tributos? Sim, deveria.
Sua única conexão com a atividade rural se resume a avais prestados em títulos emitidos por suas empresas – que, por óbvio, não se confundem com o CNPJ do produtor rural pessoa física. Essas empresas sim são as “produtoras rurais”, não seus sócios avalistas.
Até mesmo porque, como já foi bastante sedimentado para todos os outros setores da economia, o avalista pessoa física não se confunde com o devedor principal e está sujeito à insolvência civil prevista no Código Civil, não à recuperação judicial.
Caso contrário, se estaria concedendo a recuperação judicial à pessoa natural por via oblíqua, em desastrosa violação à expressa disposição legal.
Se o sócio avalista de uma siderúrgica ou de uma indústria de calçados não pode figurar no polo ativo de uma recuperação judicial, por qual motivo o sócio avalista de uma empresa do agronegócio pode, sendo que ambos têm rigorosamente as mesmas funções? Apenas por ser um “avalista rural” e ter proventos do agronegócio declarados em seu imposto de renda? A distinção não nos parece sensata, tampouco justificada.
Sobre esse ponto, é importante destacar decisões como aquela do Agravo de Instrumento nº 2239797-38.2018.8.26.0000, em que o egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo corretamente barrou o pedido de recuperação judicial de um mero “avalista rural” justamente por observar que “os sócios jamais figuraram como empregadores rurais e não contrataram atividades meio ou fim ao desempenho da atividade rural, senão como representantes das empresas rurais de que participam”.
Mais do que isso, o e. TJ-SP reconheceu que “o desenvolvimento das atividades sempre ocorreu por meio e em nome das empresas do Grupo”, sendo que os sócios apenas “atuaram como garantes em diversas operações financeiras do Grupo em recuperação”, o que, no entanto, “é prática corriqueira que por si só não se confunde com atividade rural propriamente dita”.
E o acórdão arremata dizendo: “Ser sócio de sociedade rural não significa ser empresário rural”.
Este artigo não conseguiria ser mais cirúrgico do que o nobre relator Maurício Pessoa. Ser sócio de uma sociedade rural e prestar garantias de aval a ela, ou seja, ser um “avalista rural”, não significa ser produtor rural e, portanto, não confere o direito à benesse da recuperação judicial.
Se tal benesse é reservada àqueles que são empresários e sociedades empresárias – no caso de produtores rurais pessoas físicas, por equiparação –, é imprescindível que se tenha 100% de clareza acerca da efetiva atividade desempenhada.
Ora, deve se separar o joio do trigo, ou seja, o produtor rural que efetivamente cultiva a terra e produz riqueza – e que, portanto, equipara-se a empresário – daquele mero sócio administrador de uma empresa do ramo agropecuário – que não exerce diretamente nenhuma atividade.
Dessa forma, e considerando o crescente número de pedidos de recuperação judiciais no agronegócio, é essencial que se trate o tema com o rigor devido.
Não se pode cogitar que pedidos de recuperação judicial extremamente volumosos, com centenas – às vezes milhares – de páginas de documentos, sejam processados sem o devido zelo, sem que se tenha tido sequer tempo hábil para o escrutínio necessário.
Isso sem falar na especificidade de documentos que por vezes fogem dos conhecimentos dos operadores do Direito e carecem de um olhar técnico, especializado.
Constatação prévia
Logo, mais do que em qualquer outro setor, é extremamente recomendável – para não dizer mandatório – que sejam determinadas constatações prévias.
E constatações prévias a serem realizadas por profissional diverso daquele que será nomeado para o papel de administrador judicial, diante do presumido conflito de interesses no desfecho da análise.
A constatação, no caso da recuperação judicial do agronegócio, tem a essencial função de conferir um mínimo de transparência necessário ao procedimento.
Sem ela não é possível constatar in loco se todos os postulantes de fato compram insumos, empregam pessoas na lavoura, trabalham a terra, cultivam produtos e têm notas fiscais da venda de tais gêneros, ou se apenas se limitam a gerenciar uma sociedade que concentra toda a atividade rural.
Em resumo, sem ela não é possível saber se todos os litisconsortes são de fato produtores rurais ou meros “avalistas rurais”, sem qualquer distinção para os avalistas de siderúrgicas, supermercados, redes farmacêuticas, enfim, qualquer outro setor econômico.
Não parece difícil a qualquer “avalista rural” elaborar livros caixa unilaterais e incompletos, bem como indicar no imposto de renda que tem proventos do agronegócio. O ponto é comprovar que é efetivamente produtor rural e fonte produtora de riquezas.
Portanto, tendo a constatação prévia como instrumento para se conferir o mínimo de transparência necessário, é essencial que os operadores da área tenham como mantra o princípio basilar de que “ser sócio de sociedade rural não significa ser empresário rural”.